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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A infância na versão de Chico Buarque

Duas vezes Chico



Minha História – versão de Chico Buarque

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente

Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido cada dia mais curto

Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré

Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor

Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome Menino Jesus.


O Meu Guri – Chico Buarque

Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
Dele rebentar
Já foi nascendo
Com cara de fome
E eu não tinha nem nome
Prá lhe dar
Como fui levando
Não sei lhe explicar
Fui assim levando
Ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega suado
E veloz do batente
Traz sempre um presente
Prá me encabular
Tanta corrente de ouro
Seu moço!
Que haja pescoço
Prá enfiar
Me trouxe uma bolsa
Já com tudo dentro
Chave, caderneta
Terço e patuá
Um lenço e uma penca
De documentos
Prá finalmente
Eu me identificar
Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega no morro
Com carregamento
Pulseira, cimento
Relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar
Cá no alto
Essa onda de assaltos
Tá um horror
Eu consolo ele
Ele me consola
Boto ele no colo
Prá ele me ninar
De repente acordo
Olho pro lado
E o danado já foi trabalhar
Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí!
Olha aí!
É o meu guri e ele chega!
Chega estampado
Manchete, retrato
Com venda nos olhos
Legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente
Seu moço!
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato
Acho que tá rindo
Acho que tá lindo
De papo pro ar
Desde o começo eu não disse
Seu moço!
Ele disse que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Olha aí!
Ai o meu guri, olha aí
Olha aí!
E o meu guri!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Os nós

Juntos poesia e reflexão sobre a vida. 

Ao Fim de Tudo - Cidadão Quem

Minhas lágrimas não caem mais
Eu já me transformei em pó
E os meus gritos não se escutam mais
Estão na direção do sol
Meu futuro não me assusta ou faz
Correr pra desprender o nó
Que me amarra a garganta e traz o vazio de viver e só
Se alguém encontrou um sentido pra vida, chorou
Por aumentar a perda que se tem ao fim de tudo
Transformando o silêncio que até então é mudo
Naquela canção que parece encontrar a razão
Mas que ao final se cala 
Frente ao tempo que não para
Frente a nossa lucidez


E por falar em desprender e desatar os nós, tem mais uma:



Nova - Gilberto Gil


Me disse vai embora, eu não fui 
Você não dá valor ao que possui 
Enquanto sofre, o coração intui 
Que ao mesmo tempo que magoa 
O tempo, o tempo flui 
E assim o sangue corre em cada veia 
O vento brinca com os grãos de areia 
Poetas cortejando a branca luz 
E ao mesmo tempo que machuca o tempo, me passeia 
Quem sabe o que se dá em mim? 
Quem sabe o que será de nós? 
O tempo que antecipa o fim 
Também desata os nós 
Quem sabe soletrar adeus 
Sem lágrimas, nenhuma dor 
Os pássaros atrás do sol 
As dunas de poeira 
O céu de anil do pólo sul 
Há dinamite no paiol 
Não há limite no anormal 
É que nem sempre o amor 
É tão azul 
A música preenche sua falta 
Motivo dessa solidão sem fim 
Se alinham pontos negros de nós dois 
E arriscam uma fuga contra o tempo 
O tempo salta

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A arte de ler

Breve reflexão sobre a arte de ler

Ler é arte? Seguramente. Tornar-se leitor é partilhar da construção do texto, dando a este todos os significados que as vivências e sentimentos permitirem.
Numa espécie de beabá, comecemos por Marcelino Freire, escritor brasileiro, que disse: “Tem gente que fala que tem influências de outros escritores, acho isso uma sacanagem com o porteiro do prédio, os amigos do trabalho”. O porteiro, o amigo, o estranho na esquina, o cão da vizinha, a vida é a matéria-prima do escritor, da soma de ingredientes surge a ficção; a dose, a mistura, é receita que só deve ser usada uma vez, gerando obra única, original.
Essa obra por vezes vai ao âmago, o leitor a percebe reflexo daquilo que sente. Lembro Mário Quintana: “Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele!”
Fruto da criatividade e da sensibilidade, a obra literária, além de “ler o leitor” desvenda, mostra, trás luz ao que não está óbvio. Valho-me de Paul Klee, artista plástico: “O pintor não deveria reproduzir o visível, e sim tornar visível”. Ao que parece, as artes têm o desvendar como aspecto comum. Mas tal não é tão claro, definido. E, por isso, não existe a “versão certa”, a “interpretação definitiva”, o caminho do livro é pessoal e reflete o momento do leitor. É assim que o mesmo livro, lido com intervalo de anos, mostrará aspectos antes ocultos.
Concluo com Robert Bresson, cineasta: “O importante não é o que eles (os atores) me mostram, mas o que eles escondem de mim, e sobretudo o que eles não suspeitam que está dentro deles.” Novamente em outra expressão artística encontro referências sobre as descobertas. O livro que alguém lê não é lido por mais ninguém, compartilha-se apenas o título. O leitor reinventa, a cada leitura, a arte de ler: ele é senhor da interpretação.
Então, pode-se dizer, a cada leitura descobrimos o que o escritor esconde e, sobretudo, o que ele não suspeita estar no seu texto...

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Ótica

Do livro de contos "A raiz e a copa":

            
E se não é miragem? E se o azul é de um mar que secou? Porque a impressão por vezes é resquício de fato passado, verdade latente dando volta, querendo acordar. Ao contrário de sempre, recordar não é revirar mofo, é abanar lenço do navio que atraca.
            Sob a ótica de um jogo de lentes futuro e passado estão juntos para desespero da razão. Esperam a mesma areia no orifício do tempo.
            Só por isso as coisas têm ciclos.
            E um milionésimo de segundo se reflete eternamente no pingo da chuva feito prisma, embora o arco-íris cintile parecendo coisa nova.